Informação de Contato
Realize seu Contato (83) 996247997 contatodurandcreator@gmail.com
Siga a gente!

O uso do 3D

Gravidade conta a história de dois astronautas, Ryan Stone (Sandra Bullock) e Matt Kowalski (George Clooney), que realizam uma missão de manutenção e troca de peças do telescópio espacial Hubble, quando são atin- gidos por uma chuva de detritos causados pela explosão de um satélite russo. O incidente destrói parte do veículo espacial em que viajavam, deixando um terceiro tripulante morto. Flutuando no espaço e sem comunicação com a Terra, os astronautas precisam encontrar uma maneira de retornar ao planeta, apesar das avarias graves na nave que têm à disposição.

Um primeiro aspecto que chama a atenção no filme é que, graças à falta de gravidade do espaço, a diegese não possui eixos horizontais e/ou verticais fixos, o que libera a câmera (e também os sons) para se movimentar em qualquer direção. Cuarón aproveita essa oportunidade para compor, junto com o diretor de fotografia Emmanuel Lubezki, longos planos-sequência em que os dois perso- nagens, assim como diversos objetos, circulam ao redor do Hubble nas mais diversas direções possíveis. Trata-se do amálgama de um espaço diegético e uma situação dramatúrgica propícios para experimentar tecnologias digitais de imersão do espectador, tais quais o 3D digital e o sistema de reprodução sonora Dolby Atmos.

Para realizar o filme de forma a aproveitar es- sas condições narrativas singulares, Cuarón e Lubezki criaram uma plataforma giratória com braços móveis, capaz de sincronizar os movimentos dos dois atores e da câmera em qualquer direção e velocidade, dentro de um estúdio com fundo verde (as imagens do espaço, incluindo as estrelas e a Terra, foram criadas em computador). O roteiro foi, então, decupado em 156 planos, distribuídos em 91 minutos de projeção – uma média de 45 segundos por plano, mais de nove vezes superior a um filme normal de Hollywood (SALT, 2009, p. 378). O filme inclui um plano-sequência de abertura de 13 minutos de duração, que abrange todo o primeiro ato, e no qual concentraremos a análise presente nesta seção.

Os planos longos, marca registrada estilística de Alfonso Cuarón, se ajustam perfeitamente aos filmes que utilizam a tecnologia 3D, por razões principalmente fisiológicas, pois o cérebro leva mais tempo para ‘unir’ as duas diferentes perspectivas visuais captadas por cada olho em uma imagem tridimensional única, de acordo com Céline Tricart (2017), que denomina o processo de estereópse. A visão estereoscópica é estruturada pela soma das pistas monoculares (indutores de profundidade presentes em uma imagem bidimensional) e binoculares (outros indutores de profundidade, presentes na imagem tridimensional) presentes nas imagens (SOUZA, 2011; TRICART, 2017).

As pistas monoculares são indutores de profundi- dade psicológicos, como indicam os dois autores citados, e compreendem elementos como sombra, luz, cor, linhas e pontos de fuga; após serem organizados na mise-en-scène de um plano cinematográfico, esses elementos criam a ilusão de profundidade de maneiras que podem ser per- cebidas mentalmente. Por outro lado, ambos mencionam que as pistas binoculares são indutores fisiológicos de tridimensionalidade, e só podem ser percebidas com a ajuda de óculos especiais. Aspectos que levam em conta a fisiologia da visão, como o espaço ocular de acomodação e o ponto de convergência da visão humana, compõem as pistas binoculares: são as paralaxes.

Bernard Mendiburu (2009, p. 87) define a paralaxe como um indutor de profundidade binocular que define onde um objeto está posicionado no espaço, propiciando as sensações de volume e distância espacial. Se a imagem bidimensional divide o plano cinematográfico em zona frontal (elementos em primeiro plano), intermediária (elementos em segundo plano) e de fundo (elementos em terceiro plano), a imagem 3D estereoscópica também tem zonas de profundidade, tecnicamente chamadas de paralaxe negativa, positiva e neutra (zero).

A paralaxe negativa ocorre quando os objetos parecem saltar da tela, se posicionando além do primeiro plano, dentro mesmo do espaço do auditório. A paralaxe positiva mostra o oposto: o espectador tem a sensação de que os objetos estão afundados na superfície da tela, no fundo da diegese, mais afastados do espectador do que a tela de projeção. Quando não há evidência de nenhum desses efeitos, os objetos estão em paralaxe neutra. As diferentes paralaxes só podem ser visualizadas com óculos 3D.

Céline Tricart (2017) atribui diferentes efeitos sensoriais e estéticos aos três tipos de paralaxes. De- nominando o espaço tridimensional onde ocorre a ação diegética de “caixa cênica” (2017, p. 226), ela sugere que o uso agudo da paralaxe negativa resulta em uma estética espetacular, exagerada e hiper-real. O uso denso da para- laxe positiva favoreceria filmes de narrativa mais sóbria, em especial documentários; e o uso discreto e equilibrado da combinação entre as três paralaxes provocaria, de modo geral, um senso de imersão diegética mais consistente na plateia, que se sentiria “envolvida” pelo ambiente onde ocorre a ação dramática.

A paralaxe negativa é certamente espetacular, e não muito narrativa. (…) Mas quando usamos esse tipo de cena espetacular, tem-se um impacto

dramático na audiência, e ocorre a mesma coisa com os efeitos fora da tela no filme em 3D. (…) É um tipo muito expressionista de cinema, mas esse tipo de efeito, se usado com discrição, pode ser muito poderoso (TRICART, 2017, p. 129).

Essa explicação básica de como funcionam os efei- tos de tridimensionalidade é importante para compreender as características estilísticas de Gravidade, e o quanto elas permitem que possamos discutir o grau de imersão de um filme em 3D (com a ajuda do som, elemento que discutiremos na próxima seção). Para detalhar melhor esse raciocínio, vamos discutir a sequência de abertura, que apresenta o mais longo plano do filme. Na abertura, o cenário virtual da Terra a mostra girando, à medida que a câmera vai se aproximando da estação espacial americana.

Aos poucos, a câmera flutua em direção à nave acoplada ao Hubble, enquanto Kowalski faz o mesmo da zona de fundo para a frontal, com a câmera o acom- panhando. Em seguida, o personagem se estabiliza em uma encenação diagonal. Nesse esquema estilístico, o personagem fica em primeiro plano e a nave em segundo, enquanto a Terra está ao fundo (Figura 1). Além disso, há a formação de uma pista monocular de perspectiva linear sugerindo essa profundidade, como também a colocação estereográfica de Kowalski, que está em paralaxe negativa leve. Efeitos de profundidade monoculares e binoculares estão em ação, de maneira discreta, mas consistente.

A prática estilística da construção visual, em Gra- vidade, inclui de forma frequente as composições pictóri- cas recessivas (WÖLFFLIN, 2000, p. 101). Nesse tipo de composição imagética, atores e objetos estão colocados a diferentes distâncias da câmera, criando pistas monocula- res diagonais na imagem. No caso do enquadramento em questão, a paralaxe negativa focaliza Kowalski, colocando o espectador junto a ele e provocando um efeito realista de imersão, enquanto o movimento de câmera que acom- panha o personagem cria uma composição recessiva, com o Hubble mais afastado e a Terra ao fundo. Em seguida, a composição se torna ainda mais descentralizada, com Ko- walski flutuando pelo lado esquerdo. A câmera não mais o segue, se movimentando agora vagarosamente pelo lado direito. O espectador passa a acompanhar a perspectiva da visão da câmera e não o movimento do personagem; a discrição com que isso acontece aponta para um grau reforçado de imersão e realismo. Logo, percebemos que o filme apresenta o movimento de câmera como parte da sua mise-en-scène. No caso de Gravidade, esta não pode ser considerada uma variável independente.

Figura 1. Composição recessiva com ator em primeiro plano, a nave em segundo e a Terra em terceiro (2:54). Figure 1. Recessive composition with actor in the foreground, ship in second and Earth in background (2:54).

Em seguida, a câmera continua a avançar, apro- ximando-se cada vez mais do cenário do Hubble. Este se encontra em perpendicular, proporcionando mais profun- didade, e ao mesmo tempo acostumando gradativamente o espectador à ausência relativa de um eixo horizontal fixo. Em um desses movimentos, percebe-se que o braço robótico do Hubble está em paralaxe negativa no primeiro plano, ‘pendendo’ para fora da tela; isso significa que mais uma vez o espectador é imerso na mesma camada visual do personagem, já que o elemento no primeiro plano está em paralaxe negativa, invadindo o espaço do auditório. Esta composição deixa o espectador tão imerso no filme que ele é capaz de abaixar a cabeça para não bater na peça – há, portanto, um grau elevado de realismo na imersão.

Nos primeiros minutos do plano, o uso meticulo- samente organizado de pistas monoculares e binoculares constrói um espaço tridimensional completo e estabelece um grau de imersão realista e reforçada, através desses efeitos; Cuarón convida o espectador a acompanhar a ação de Gravidade de dentro do espaço diegético, junto com personagens, e não diante deles. O público é con- vocado a navegar no espaço e se tornar um participante do filme, uma testemunha privilegiada dos eventos que virão. De modo geral, esse “convite” se estende ao filme como um todo.

Um esquema estilístico constante usado em todo o plano é a movimentação de câmera, para os lados (pan), para a frente e em diagonal, mas sempre de modo suave e em velocidade constante. A câmera, de fato, se movimento

exatamente da mesma maneira que os astronautas. Cuarón também cuida para que todas as camadas de profundidade estejam sempre em foco. Essa profundidade nítida, junto com a economia de cortes, ajuda a mente do espectador a compreender facilmente a geografia do cenário, e evita sobressaltos que levem à exaustão fisiológica do nervo ocular.

Outro aspecto relevante da mise-en-scène do filme é o cenário digital. A Terra permanece todo o tempo na zona de fundo, em paralaxe positiva, e é mantida sem- pre em foco nítido. No contexto do plano-sequência, e do filme como um todo, é possível concluir que o uso da profundidade de campo ajuda a aumentar o efeito estereoscópico, encravando as figuras visuais da zona de fundo sempre no terceiro plano, muitas vezes em paralaxe positiva.

Assim, a câmera se movimenta constantemente em combinações de pan, tilt e linhas diagonais, cortando a área em torno do Hubble e apresentando o espaço sideral de modo muitas vezes perpendicular. A mise-en-scène dinâmica é propícia para a organização visual de um esquema recessivo. Além disso, vemos Kowalski cortar obliquamente o plano da imagem, indo da zona de fundo para a zona frontal da imagem, variando entre paralaxes negativas e positivas discretas. Dessa forma, Cuarón não apenas constrói um espaço diegético tridimensional, como coloca efetivamente o espectador dentro dele. O efeito de imersão realista é realmente reforçado.

Figura 2. A primeira aparição de Sandra Bullock no filme: a vida de cabeça para baixo (4:04). Figure 2. Sandra Bullock’s first appearance in the movie: life upside down (4:04).

Uma vez que o cenário tridimensional esteja bem estabelecido, a narração nos apresenta a um segundo personagem, que surge pela primeira vez saindo pela zona frontal, na lateral esquerda, criando um grande primeiro plano de caráter recessivo, com uma figura bem próxima à câmera e uma ação menos importante mostrada ao fundo. Na sequência, a saída do astronauta do quadro termina por apresentar, em primeiro plano, a personagem princi- pal do filme: Ryan Stone (Sandra Bullock), que aparece pela primeira vez de cabeça para baixo – não apenas uma maneira curiosa de chamar a atenção para a importância narrativa dela, mas talvez simbolizando mesmo o que acontecerá com a própria vida dela nos minutos a seguir (Figura 2). David Bordwell explica que grandes primei- ros planos são constantemente usados para criar “efeitos pictóricos dramáticos de suspense e surpresa” (2008, p. 144), exatamente como ocorre aqui.

Neste ponto do plano-sequência, o enredo e a mise- -en-scène enfatizam a tensão da astronauta, e sua falta de familiaridade com o espaço. Ela se sente fisicamente enjoada, e durante a manutenção do telescópio com Ko- walski ao lado, um parafuso escapa de suas mãos (Figura 3) – uma oportunidade perfeita para criar um instante poderoso e realista de paralaxe negativa, com o parafuso flutuando no meio da plateia, até que a mão de Kowalski o alcança (é preciso conter o instinto de abaixar a cabeça para se desviar). O uso da paralaxe negativa, mais uma vez, é rápido e contido, sem procurar um efeito espetacular ou hiper-realista. Existe, claramente, uma preocupação em manter a atenção do espectador no enredo, sem permitir que essa atenção se desvie para aspectos extra-diegéticos, o que ocorreria se a aplicação dos recursos do 3D fosse exagerada. O efeito imersivo é potente, mas realista.

Apresentados os personagens, é chegada a hora do conflito que impulsiona o enredo rumo ao segundo ato. A base espacial que fica na cidade de Houston avisa aos astronautas que um míssil russo explodiu um satélite inativo, ocasionando sem querer uma nuvem de detritos que deve passar muito perto do Hubble. Nesse momento, há uma clara mudança de ritmo na mise-en-scène, pois a movimentação dos astronautas se torna mais frenética. A câmera, que flutuava suavemente e em ritmo constante, passa a girar em movimentos rápidos e inconstantes, criando uma sensação de instabilidade e perigo.

Segundos antes de os detritos atingirem o Hub- ble, Kowalski surge flutuando de cabeça para baixo, em primeiro plano, enquanto Stone pode ser vista na zona intermediária, presa no grande braço robótico do telescó- pio espacial, e o planeta Terra aparece ao fundo. Trata-se de um enquadramento que explicita as posições espaciais dos dois personagens, em relação à estação espacial, e desta em relação à Terra, antes que o caos tome conta da situação. O restante do plano-sequência é dedicado a mostrar o violento impacto dos destroços do satélite russo contra a estação espacial. O terceiro astronauta da missão é atingido logo no que as primeiras peças passam velozmente pela Hubble, mas o pior ainda está por vir, quando destroços maiores atingem e despedaçam a maior parte da estação espacial que acomoda o grande telescó-pio. Kowalski consegue escapar sem danos, mas Stone não tem a mesma sorte: apesar de não ser diretamente acertada por nenhuma peça, o braço mecânico em que ela está presa é despedaçado, e ela passa a girar sem controle para longe do Hubble (Figura 4).

Figura 3. O parafuso flutua em direção à plateia, em paralaxe negativa (6:33). Figure 3. The screw floats toward the audience in negative parallax (6:33).

No contexto desses giros, é importante ressaltar o papel narrativo da luz dentro da mise-en-scène. Além de funcionar como indutor de profundidade monocular, ela também auxilia a personagem (e o espectador) a organizar mentalmente a posição espacial do corpo que gira. Nesse trecho, a luz solar está sempre do lado esquerdo da tela, enquanto a Terra está do lado direito (Figura 5).

O plano-sequência é fortemente imersivo. Resta- -nos saber se a imersão se traduz, também, em realismo. Nesse sentido, vale a pena recordar os estudos de Miriam Ross (2015), para quem o cinema tridimensional possui forte potencial a ser explorado, em termos de provocar no espectador reações fisiológicas que vão além dos sen- tidos da visão e da audição. Baseando-se em conceitos de Vivian Sobchack (2004) e Steven Shaviro (2015), que atentam para os modos como o cinema é capaz de trabalhar relações sensoriais e táteis entre o espectador e o filme, Ross (2015) sugere que o uso do 3D traria uma intensidade maior à tatilidade das imagens, através das composições visuais que usam as técnicas de paralaxe para construir campos visuais mais largos e intensos. Essa ideia é confirmada em nossa análise. Em toda a sequência, paralaxes negativas e positivas cuidam de manter a ação diegética dentro da “caixa cênica” de Céline Tricard (2017, p. 226), expandindo o senso de imersão do espectador e, em grande medida, também a verossimilhança daquilo que vimos.

Precisa de um projeto de sucesso?

Vamos trabalhar juntos

Orçamento
  • right image